OS REIS E OS (PÓ)DEROSOS

OS REIS E OS (PÓ)DEROSOS

Wicliffe de Andrade Costa

SUGESTÕES PARA USO DA MEDITAÇÃO

Os comentários foram gerados em muitos dias de meditação em um único salmo. Após dezenas de leituras, várias folhas de papel se enchiam com as percepções que iam surgindo. Ao meditar nos salmos, sugiro que seja tomado um caminho semelhante: debruçar-se sobre o mesmo salmo por vários dias. Em cada dia, uma seção do salmo (indicada pelos subtítulos das meditações) poderá ser apreciado devagar, como se você estivesse saboreando sua sobremesa preferida.

Minha expectativa é que essa abordagem dos salmos seja uma experiência enriquecedora e marcante em termos espirituais.

SALMO 10

1 SENHOR, por que estás tão longe?

Por que te escondes em tempos de angústia?

2 Em sua arrogância o ímpio persegue o pobre,

Que é apanhado em suas tramas.

3 Ele se gaba de sua própria cobiça

e, em sua ganância, amaldiçoa e insulta o SENHOR.

4 Em sua presunção o ímpio não o busca;

não há lugar para Deus em nenhum dos seus planos.

5 Os seus caminhos prosperam sempre;

tão acima da sua compreensão estão as tuas leis

que ele faz pouco caso de todos os seus adversários,

6 pensando consigo mesmo: “Nada me abalará!

Desgraça alguma me atingirá,

nem a mim nem aos meus descendentes”.

7 Sua boca está cheia de maldições, mentiras e ameaças;

violência e maldade estão em sua língua;

8 Fica à espreita perto dos povoados;

em emboscadas mata os inocentes,

procurando às escondidas as suas vítimas.

9 Fica à espreita como o leão escondido;

fica à espreita para apanhar o necessitado;

apanha o necessitado e o arrasta para a sua rede.

10 Agachado, fica de tocaia;

as suas vítimas caem em seu poder.

11 Pensa consigo mesmo: “Deus se esqueceu;

escondeu o rosto e nunca verá isto”.

12 Levanta-te, SENHOR!

Ergue a tua mão, ó Deus!

Não te esqueças dos necessitados.

13 Por que o ímpio insulta a Deus, dizendo no seu íntimo:

“De nada me pedirás contas!”?

14 Mas tu enxergas o sofrimento e a dor;

observa-os para tomá-los em tuas mãos.

A vítima deles entrega-se a ti;

tu és o protetor do órfão.

15 Quebra o braço do ímpio e do perverso,

pede conta de sua impiedade

até que dela nada mais se ache.

16 O SENHOR é rei para todo o sempre;

da sua terra desaparecem os outros povos.

17 Tu, SENHOR, ouves a súplica dos necessitados;

tu os reanimas e atendes ao seu clamor.

18 Defendes o órfão e o oprimido,

a fim de que o homem, que é pó, já não cause terror.

O REI E OS (PÓ)DEROSOS

Meditação sobre o Salmo 10

Em vários salmos e na literatura sapiencial bíblica (Jó, Provérbios e Eclesiastes), levanta-se a questão da realidade do mal, patente em diversas dimensões da sociedade. Considerando a soberania de Deus e o seu caráter, levantam-se muitas questões para o homem piedoso e temente a Deus.

1. SEM DEUS, O FLORESCIMENTO DO MAL (v. 1-11) –

Uma realidade marcada pelo mal suscita a primeira indagação do salmista. Levando em conta o caráter de Deus, ele tem dificuldade em entender a prosperidade dos ímpios. Ao homem piedoso parece que o SENHOR está alheio, enquanto os seres humanos atravessam tempos angustiosos. A questão, nascida no íntimo, é levada a Deus num misto de honestidade e ousadia. Para o homem piedoso, o SENHOR parece distante, e ele indaga a razão disso a fim de encontrar algum sentido para o mal que constata.

Logo em seguida saberemos que os tempos de angústia não decorreram de desastres naturais – como um terremoto ou um furacão -, mas resultaram de escolhas humanas. O autor do mal é o homem sem piedade, isto é, aquele que não tem o temor de Deus. Ele amaldiçoa e insulta o SENHOR (v. 3 e 13), não leva Deus em consideração em nada do que planeja (v. 4), desconsidera a lei de Deus (v. 5) e, enfim, no seu íntimo, acredita que Deus está alheio ao que acontece entre os homens (v. 11).

A lei na sociedade visa coibir a propagação do mal, isto é, colocar barreiras à maldade, à cobiça, à arrogância, à ganância, que estão no coração dos seres humanos. Tal entendimento está explicitado nas considerações do apóstolo Paulo quando afirma que as autoridades atuam como servas de Deus sendo agentes da justiça “para punir quem pratica o mal” (Rm 13.4).

Negando a realidade de Deus, o ímpio é a referência para si mesmo. A lei de Deus, que leva à vida – tanto em termos pessoais quanto em termos comunitários – é desconsiderada. Em seu lugar vigora uma “lei” definida pelo próprio indivíduo.

Negada a primazia dos decretos divinos, vigora a lei do “mais forte”, que se autoafirma de muitos modos: com ameaças e mentiras, violência e maldade (v. 7), perseguições e tramas ardilosas (v. 2), armadilhas postas às escondidas (v. 9), emboscadas para apanhar os inocentes (v. 8). No arsenal do ímpio, uma das armas principais é a língua, que usa de diversas maneiras para dominar os outros: maldições, mentiras, ameaças, palavras violentes e cheias de maldade (v. 7).

A cada empresa bem sucedida, o ímpio sente-se fortalecido e cada vez mais se ensoberbece e busca afirmar-se diante dos adversários (v. 5). Fazendo pouco caso das vítimas de suas maldades, até se pretende invencível, pois imagina que nenhuma desgraça virá sobre si ou sobre os seus descendentes (v. 6).  O salmo faz a analogia desse homem com um leão escondido (v. 9) que, agachado, fica de tocaia, e suas vítimas não têm escapatória (v. 10). De fato, nessa passagem nenhum poder humano se levanta para confrontar o ímpio em sua maldade e prepotência.

Tudo o que se descreve do ímpio diz respeito à maneira como ele age em relação aos outros homens. No entanto, isso é apresentado como um insulto a Deus (v. 3 e 13), na medida em que o ímpio afronta a lei de Deus, que tem por objetivo promover a justiça na sociedade, coibindo a opressão e a exploração, garantindo direitos aos mais vulneráveis.

2. COM DEUS, A DERROTA DO MAL (v. 12-18) –

Mesmo que Deus lhe pareça distante, o salmista toma uma iniciativa baseada na fé: confia no caráter de Deus, que se revelara a Moisés como “SENHOR, SENHOR, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e fidelidade” (Êx 34.6). Para o homem ímpio, Deus está distante. Ele está seguro disso, razão pela qual não teme ser atingido pelo juízo de Deus, que “não deixa de punir o culpado” (Êx 34.7). Em contraste, o homem piedoso clama a Deus, na confiança de que “o SENHOR faz justiça e defende a causa dos oprimidos” (Sl 103.6), pois “retidão e justiça são a base do seu trono” (Sl 97.2).

A ubiquidade do mal pode levar a uma acomodação com ele em razão da nossa familiaridade com um mundo corrupto ou, ainda pior, resultar numa cumplicidade. O salmista não perdeu a sua referência de justiça e retidão, por isso não se acomodou nem se tornou cúmplice do mal.

Os versículos 14, 17 e 18 mostram-nos o caráter de Deus. O perfil divino apresentado possibilita compreender a explicação solicitada (v. 1) e a súplica agora feita (v. 12 e 15). Se o SENHOR “enxerga o sofrimento e a dor”, certamente estaria longe de modo a não ver o que se passava. Sendo o “protetor do órfão”, sem dúvida se teria escondido para não pôr fim a esses “tempos de angústia”. Se ele ouve a súplica dos necessitados (v. 17), então se pode clamar: “Levanta-te, SENHOR!”. Se ele é o defensor do órfão e do oprimido (v. 18), cabe o clamor: “Ergue a tua mão, ó Deus! Não te esqueças dos necessitados.” As súplicas pedem uma intervenção divina em defesa dos oprimidos e explorados.

Depois da súplica (v. 12), ficamos a indagar se o salmista constatou a intervenção salvadora de Deus. Mas a fé, “a certeza daquilo que esperamos” (Hb 11.1), já anuncia um quadro diferente. O ímpio presumia que não seria abalado por nada (v. 6), porém o salmista, contemplando a anulação completa da impiedade (v. 15), proclamou não haver nenhuma razão para ficar aterrorizado; nada mais causa terror (v. 18). Após clamar pela intervenção divina, o poeta pode descansar na segurança da fé. Dos versos finais (v. 16-18) emana uma tranquilidade que não se baseia no que é perceptível, mas na confiança no caráter de Deus, a quem ele entregou a sua causa (v. 14).

Para pensar – Diante do mal: estamos conformados? Somos cúmplices? Ou nos colocamos ao lado do “Rei poderoso, amigo da justiça” (Sl 99.4)?

Para orar – Por coragem para erguer a voz em favor dos que não podem defender-se, vindicando os direitos dos pobres e dos necessitados (Provérbios 31.8-9).

Para guardar – Ante a realeza divina, os homens são meramente (PÓ)DEROSOS.

OBSERVAÇÃO

Esta meditação faz parte do livro “Intimidade com Deus: meditações nos Salmos”, que você pode adquirir com o autor. Contato: <wicliffecosta@ufrnet.br>.

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