O LAMENTO DE JÓ – Parte V

O LAMENTO DE JÓ – Parte V

O lamento de Jó revela toda sua dor como ser humano.

Na quarta parte, vimos como Jó reagiu a todas as calamidades que vieram sobre ele. Nesta parte, veremos que Jó era humano e como tal tinha todo o direito de extravasar seus sentimentos, não sendo recriminado por Deus por isso. Jó desejou intensamente a morte. Ao desejá-la, o patriarca tem como objetivo dar fim ao ciclo de sofrimento que Satanás lhe impôs. Constataremos que, apesar de ele desejar morrer, não buscou o suicídio. Nesse aspecto, a vida de Jó nos passa uma mensagem muito importante, mostrando-nos que, mesmo diante do mais terrível sofrimento, o patriarca não ousou entrar numa “jurisdição” que pertence somente a Deus. Ele, indiretamente, nos transmite a importante mensagem de que o único que pode decidir acerca do início e do fim da vida é o Deus altíssimo.

O rabino Abraham Shabot (2018, p. 1483) destaca que Jó foi o “ser humano que mais sofreu na história humana”. Poucas vozes discordariam dessa afirmação. É impossível ler os dois primeiros capítulos do livro de Jó e não se atribular com tamanho sofrimento. Mas o sofrimento aliado ao silêncio de Deus é o que faz da história de Jó algo muito único e intrigante.

Depois disto, Jó passou a falar e amaldiçoou o dia do seu nascimento. Jó disse: “Pereça o dia em que nasci e a noite em que se disse: ‘Foi concebido um homem!’ Que aquele dia se transforme em trevas, e Deus, lá de cima, não se importe com ele, nem resplandeça sobre ele a luz. Que as trevas e a sombra da morte se apoderem desse dia; que uma nuvem habite sobre ele; que tudo o que pode escurecer o dia o espante. Aquela noite, que dela se apoderem densas trevas; que ela não se alegre entre os dias do ano, nem entre na conta dos meses. Sim, que seja estéril aquela noite, e dela sejam banidos os gritos de alegria. Amaldiçoem-na aqueles que sabem amaldiçoar o dia e sabem instigar o Leviatã. Escureçam-se as estrelas do seu alvorecer; que a noite espere a luz, e a luz não venha; que não veja o despontar da alvorada, pois não fechou as portas do ventre da minha mãe, nem escondeu dos meus olhos o sofrimento.”

“Por que não morri ao nascer? Por que não expirei ao sair do ventre de minha mãe? Por que houve um colo que me acolhesse, e seios, para que eu mamasse? Porque agora eu repousaria tranquilo; dormiria, e então haveria para mim descanso, com os reis e conselheiros da terra que construíram para si mausoléus; ou com os príncipes que tinham ouro e encheram as suas casas de prata; ou, como aborto oculto, eu não existiria, como crianças que nunca viram a luz. Ali os maus cessam de perturbar, e ali repousam os cansados. Ali os presos juntamente repousam e não ouvem a voz do capataz. Ali está tanto o pequeno como o grande, e o servo fica livre de seu senhor.”

“Por que se concede luz ao miserável e vida aos de coração amargurado, que esperam a morte, e ela não vem, que cavam em procura dela mais do que tesouros ocultos, que se alegrariam por um túmulo e exultariam se achassem a sepultura? Por que se concede luz ao homem cujo caminho é oculto, e a quem Deus cercou de todos os lados?”

“Porque em vez do meu pão me vêm gemidos, e os meus lamentos se derramam como água. Aquilo que temo me sobrevém, e o que receio me acontece. Não tenho descanso, não tenho sossego, não tenho repouso; só tenho inquietação.” (Jó 3:1-26, NAA)

Jó passou da riqueza e prosperidade para a adversidade extrema. Os três amigos de Jó, Elifaz, Bildade e Zofar, sensibilizados pelas catástrofes na vida do amigo, foram visitá-lo. Todavia, ficaram sem palavras ao verem o debilitado estado de saúde de Jó. Após sete dias, Jó rompeu o silêncio com um lamento que saiu das profundezas da sua alma. Jó mirou o dia de seu nascimento e fez três perguntas, desabafando assim tudo o que sentia. Na perspectiva de Jó, se Deus era a causa de sua vida, deveria ser também a causa de sua morte, pois se dEle vinha o bem, também poderia vir o mal.

Após o primeiro ciclo de provações, Jó está exausto e busca sentido no seu sofrimento. Jó se vê diante da “falta de sentido” ou, como se diz hoje em dia, “ficou sem chão”. Buscando reacomodar a sua fé à sua nova realidade.

I – PRIMEIRO LAMENTO DE JÓ: POR QUE NASCI? (3:1-10)

1. “Por que nasci?”. A dor de Jó era profunda e somente a poesia seria capaz de expressar toda a carga emocional vivida pelo patriarca. Assim como ocorre com a alma do salmista (130:1). Os dez primeiros versículos do capítulo três são a respeito do primeiro questionamento de Jó: Por que nasci? Dessa mesma forma, o profeta Jeremias expôs os sentimentos diante de seus conflitos (Jr 20:14-18). Sendo assim, Jó não está sozinho em lamentar e sofrer diante da dor.

2. Que em lugar da memória viesse o esquecimento. Nesse momento de dor, Jó não amaldiçoou a Deus. Em vez disso, amaldiçoou o dia de seu nascimento. Para ele, esse dia deveria ter sido apagado da memória. Muitas vezes, em momentos de profunda tristeza e desânimo, nos sentimos com raiva e desgosto da nossa existência.   

3. Que ao invés da ordem viesse o caos. No lugar da luz que raiou por ocasião do seu nascimento e que revelou o seu sofrimento, Jó desejou que as trevas dominassem. Por que em vez da paz, veio a dor; ao invés da ordem, veio o caos. Desse raciocínio, Jó menciona o Leviatã, que era um animal marinho que simbolizava o caos. A lógica é simples: se Deus não tivesse feito aquele dia, ele não teria sido concebido e, portanto, não passaria por tudo isso. Nesse sentido, o Novo Testamento revela como o nosso Senhor é misericordioso e nos trata com amor e ternura em momentos de tribulação, pois aos pés da cruz é o melhor lugar para derramar a nossa alma (Jo 11:32,33).

II – SEGUNDO LAMENTO DE JÓ: POR QUE NÃO NASCI MORTO? (3:11-19)

Descansando em paz. Jó parou de amaldiçoar e começou a reclamar. Reclamou de não ter nascido morto. Ele queria descanso de todo o sofrimento. Para ele a morte era uma forma de descansar em paz.

Livre de tribulações. Quanto mais o sofrimento aumentava mais Jó queria não existir. Ele desejava ter nascido como um “natimorto”, um feto que nunca viu a luz (v.16). A palavra hebraica nephel, possui o sentido de “um aborto espontâneo” e é traduzido dessa forma em Eclesiastes 6:3 e Salmo 58:8. Em nenhum momento Jó faz apologia ao aborto, mas usa-o no sentido metafórico de “descanso do sofrimento”.

Uma realidade para o cristão. O Novo Testamento nos ensina que enquanto estivermos neste mundo estaremos sujeitos à dor, ao luto, ao sofrimento (Fp 4:11,12). Mas, ao mesmo tempo, temos uma promessa consoladora de Jesus (Jo 16:33, Fp 4:13).

III – TERCEIRO LAMENTO DE JÓ: POR QUE CONTINUO VIVO? (3:20-26)

Vale a pena viver? A vida, para Jó, tinha se tornado intolerável, ao ponto de ele lamentar dizendo: “Por que se concede luz ao miserável e vida aos de coração amargurado?” (3:20). A palavra hebraica amel, traduzida aqui como “miserável”, é usada no sentido de alguém cuja vida é atribulada pela miséria e que, por isso, torna-se incapaz de exercer suas funções.

Sem o favor de Deus? Jó volta a indagar: “Por que se concede luz ao homem cujo caminho é oculto, e a quem Deus cercou de todos os lados?” (Jó 3:23). Essa pergunta busca compreender o porquê de Deus permitir o sofrimento. Aqui há um paralelo com Provérbios 4:18, onde é dito que “o caminho do justo é como a luz da aurora que brilha mais e mais até ser dia perfeito”. Na literatura sapiencial, a palavra hebraica traduzida como “caminho” é derek e se refere ao caminho de sabedoria de Deus, que conduz a vida. Para Jó, esse fato havia se tornado um paradoxo, pois ele não entendia por que Deus escolheu o sofrimento para a sua vida.

Um caminho de sabedoria e maturidade. Muitas vezes sentimo-nos sem esperança diante dos sofrimentos e tribulações da vida. Mas devemos olhar para o alto onde Cristo vive. Nele, podemos manter o equilíbrio e a confiança durante a tormenta e, assim, trilhar um caminho de sabedoria e maturidade no sofrimento.

Jó, mesmo sem entender a razão de todo o sofrimento, não amaldiçoou a Deus nem o negou. Mas ele expôs toda a sua humanidade, indagando e lamentando, na frente dos amigos. Jó foi um ser humano igual a nós, e não há mal algum em abrirmos nossa boca em meio ao sofrimento.

Moisés, Elias, Jonas e Jeremias pediram a morte a Deus; desejaram deixar de viver. Vimos que Jó também desejou. Nosso Deus é amoroso e bondoso. Esses homens enfrentaram grandes crises na nação de Israel, principalmente Moisés, Elias e Jeremias; Esgotamento físico, fracasso ministerial, ameaças de morte. Deus trouxe soluções e alívio a todos eles. Deus não apontou os erros, não tentou humilhá-los. A voz de Deus cura, o Deus que mostra sua bondade. Na força do nosso braço, tudo vai dar certo até chegar o esgotamento físico e mental.

Há vertentes, portanto, que se espalharam no meio evangélico brasileiro que vão de um extremo ao outro em relação ao tema do ato de se matar, o suicídio. Jó não tentou se matar, mas desejou a morte. Moisés, o homem que deu a Lei de Deus ao mundo. O Jó da perseverança incrível. Jeremias, o Profeta, que foi extraordinariamente usado por Deus. Jonas, o maior Profeta aos gentios do Antigo Testamento. Elias, Profeta único, que não experimentou a morte, sendo levado numa carruagem de fogo aos céus, presente na Transfiguração com Cristo. Todos esses grandes homens de Deus foram curados por Deus do desejo de morrer.   

O que sabemos, de acordo com as Escrituras, é que a angústia profunda que pode desencadear num quadro de Depressão pode atingir qualquer cristão verdadeiro e cheio do Espírito Santo. Não, o suicídio apesar de ser um pecado grave, não é um pecado capital e sem perdão. A Bíblia diz que o único pecado sem perdão é a blasfêmia contra o Espírito Santo. Tenhamos sempre em mente que a tristeza e a angústia são passageiras e que o sol há de brilhar no outro dia. O Deus de Moisés, de Elias, de Jeremias e de Jó é maior do que todos os nossos problemas. Cristo vive para sempre! Que Ele nos cure!

Soli Deo Gloria! Glória Somente a Deus!

VOCABULÁRIO:

-Natimorto: Que ou aquele que nasce morto.

-NAA: Nova Almeida Atualizada.

BIBLIOGRAFIA:

ANDERSEN, Francis I. Jó: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2008.

ANDRADE, Claudionor. Jó: o problema do sofrimento do justo e o seu propósito. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.

KEENER, Craig S. A Hermenêutica do Espírito: lendo as Escrituras à luz do Pentecostes. São Paulo: Vida Nova, 2018.

WALTKE, Bruce K. Teologia do Antigo Testamento: uma abordagem exegética, canônica e temática. São Paulo: Vida Nova, 2015.

MACARTHUR, John. Comentário Bíblico: Jó. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019.

VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. São Paulo: Vida Nova, 2016.

HARRIS, R. Laird; Archer Jr, Gleason L; Waltke, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.

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