VÓS SOIS SAL, LUZ E ODIADOS – Mateus 5.11-16 (por Rev. Flávio Américo de Carvalho)
         
Não é comum trabalhar as metáforas do “sal da terra” e “luz do mundo” (Mt 5.13-16) como fazendo parte da mesma perícope da declaração de Jesus de que são bem-aventurados os que são perseguidos por causa dEle (Mt 5.11-12). A seção de sentido completo (perícope) mais comum é ligar os versos 11 e 12 com as outras bem-aventuranças (Mt 5.3-10). Mas existem elementos textuais que apontam para a escolha defendida nesse texto.

É importante observar que os pobres de espírito, os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de coração, os pacificadores e os que são perseguidos por causa da justiça estão colocados numa estrutura comum:

BEM-AVENTURADOS+GRUPO+PORQUE+BÊNÇÃO


Além desses aspecto estrutural citado, também é possível destacar outro, já que a primeira e a oitava bem-aventuranças são diferentes das que estão entre elas por terem bênçãos descritas no presente do indicativo e pelo fato da bênção ser a mesma (estar no Reino dos Céus) fazendo com que a primeira e a oitava bem-aventuranças funcionem como abertura e fechamento estrutural no esquema descrito abaixo:


A – … humildes de espírito…deles é (presente) o Reino dos Céus.
      B – … Choram… serão consolados (futuro, passivo divino).
             C – … Mansos… herdarão a terra (futuro com objeto direto).
                     D – … têm fome e sede de justiça… serão fartos (futuro, passivo divino).
                     D’- … Misericordiosos… serão alcançados por misericórdia (futuro, passivo divino).
             C’- … limpos de coração… verão a Deus (futuro com objeto direto).
      B’- … Pacificadores… serão chamados filhos de Deus (futuro, passivo divino).
A’- … os perseguidos por causa da justiça… deles é (presente) o Reino dos Céus.

Embora a nona bem-aventurança (verso 11 – “por minha causa”) funcione como uma extensão explicativa do que significa ser perseguido por causa da justiça do verso 10 (implicando que o que é justo na questão não tem a ver com nossos valores, mas com a pessoa de Cristo), o ser perseguido por causa de Jesus (verso 11 e 12) está ligado ao discurso sobre os crentes serem sal (verso 13) e luz para a sociedade (verso 14-16) pelo uso da segunda pessoa do plural ao invés do uso da terceira pessoa do plural das bem-aventuranças anteriores (versos 3-10).

O uso da segunda pessoa denota compromisso e coletividade. Não é que as outras bem-aventuranças não pretendam ensinar uma vida comprometida com Cristo, contudo, sua linguagem é mais impessoal do que a utilizada por Jesus para falar diretamente aos discípulos, destacando-os da multidão que ouvia o sermão do monte como um todo: “vós sois”.

Todo cristão verdadeiro é perseguido por causa de sua fé. Costumo dizer que alguém que se diz crente e que não é perseguido por isso pode estar vivendo uma de duas situações, a saber, ou ele morreu e já faz parte da Igreja Triunfante, ou ele não está sendo discípulo de Cristo. Se até misturado com o povo de Deus ainda vive joio (Mt 13.24-30), quanto mais seremos considerados entes estranhos e inconvenientes quando lidarmos com descrentes em nossas famílias, trabalho, estudo e na sociedade como um todo.

Resumindo o que Jesus quer dizer com sermos sal e luz para a sociedade, pode-se destacar quatro ensinos. Primeiro, ser sal significa ser diferente. É difícil saber o que exatamente Jesus quer dizer quando diz que devemos salgar. É possível apontar três sentidos, que não são necessariamente excludentes entre si: A) evitar a decomposição do mundo morto pelo pecado, assim como o sertanejo fazia, antes da geladeira, para conservar carne, criando, assim, a deliciosa carne de sol. B) Purificar uma sociedade marcada por impurezas de todos os tipos (o sal era um símbolo de pureza no AT, conforme Êx 30.35, 2Re 2.19-23 e talvez Ez 16.4). C) Trazer sabedoria a um mundo louco (o sal como símbolo de sabedoria aparece, por exemplo em Cl 4.6). No final das contas, a ênfase de Jesus está no fato de que os discípulos são essencialmente diferentes dos não cristãos (daí o efeito benéfico na sociedade) e que, caso os primeiros se tornem semelhantes aos últimos, receberão o juízo de Deus, pois o cristão nominal, aquele que não está comprometido em viver os valores do Sermão do Monte, “para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens” (Mt 5.13). 

Em segundo lugar, ele não apenas é alguém diferente, o cristão é alguém que não consegue esconder dos outros essa diferença essencial. Jesus diz isso quando compara os discípulos com uma cidade sobre o monte. Tente imaginar-se 2000 anos atrás. Ainda não há iluminação elétrica e o consequente céu noturno claro de hoje, que nos impede de ver as estrelas. Imagine agora que você está num vale muito escuro e olha para uma cidade cheia de tochas e lâmpadas à óleo sobre um monte. Não tem como não ver esse ajuntamento urbano. Assim é o discípulo de Jesus no meio das trevas.

Jesus divide a figura da luz em uma segunda subfigura, uma lâmpada (tipo a do Aladim) numa casa escura. Aqui o significado da metáfora é a nossa terceira lição sobre o impacto dos discípulos na sociedade, isto é, além de ser essencialmente distinto e dessa distinção saltar aos olhos, o cristão deve estar envolvido com a sociedade para ser útil para o Reino de Deus, pois, ao isolar-se da sociedade, ele torna-se tão eficiente quanto uma lâmpada embaixo de uma vasilha.

A quarta e última lição é que ser sal da terra e luz do mundo é algo que fazemos como igreja, como comunidade. Jesus não usa “tu”, ele usa “vós”, mostrando que essa ação não é para agentes solitários, mas ação coletiva. Isso vai contra o individualismo contemporâneo. Ser uma boa influência na sociedade, portanto, significa ser diferente (diferença que é sempre visível), estar envolvido socialmente e fazer isso como um povo que vive e atua junto.

Mt 5.11-16 nos ensina que, quando somos agentes de transformação salgando e iluminado a sociedade, isso implica que também sofreremos perseguição, algo que aconteceu com os profetas antes de nós. Por causa do nome de Jesus, a cultura que tentamos abençoar também se oporá a nós. Mas não devemos esmorecer, afinal, como ensina o apóstolo Pedro, ecoando o Sermão do Monte: “alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando. Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus” (1Pe 4.13-14).

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